
Decisões judiciais consolidam a responsabilidade de plataformas digitais de transporte por acidentes de motoristas parceiros, considerando-as prestadoras de serviço e não meras intermediárias. Essa responsabilização se fundamenta no amplo controle que as plataformas exercem sobre a operação, atraindo obrigações legais pelos atos de seus prepostos.
A Responsabilidade das Plataformas Digitais de Transporte por Incidentes Envolvendo Terceiros
O cenário atual da economia digital apresenta desafios complexos para a legislação e a jurisprudência, especialmente no que tange à responsabilização de empresas que operam por meio de plataformas. Um dos debates mais relevantes envolve a responsabilidade de plataformas de transporte por acidentes que seus motoristas parceiros causam a terceiros. Decisões judiciais recentes vêm consolidando um entendimento que redefine os limites entre o papel de “mera tecnologia” e o de um provedor de serviços de transporte, com implicações significativas para a gestão de riscos e a conformidade legal dessas empresas.
Desvendando a Natureza Jurídica: Mais que Tecnologia, um Serviço de Transporte
Por muito tempo, a defesa primária de muitas plataformas digitais foi a de que elas seriam apenas facilitadoras tecnológicas, conectando usuários e prestadores de serviço, sem responsabilidade direta sobre a execução da atividade principal. No entanto, o Judiciário brasileiro tem refutado essa tese. A realidade operacional dessas plataformas, que gerenciam todas as etapas do processo — desde a disponibilização do aplicativo em nome próprio, passando pela captação de dados e meios de pagamento, até a estipulação de preços e o acompanhamento geográfico das corridas —, as posiciona como verdadeiras prestadoras de serviços de transporte. Elas não apenas viabilizam o negócio, mas orquestram sua dinâmica, ditando as regras e condições da contratação.
Plataformas Empresariais: O Controle que Gera Responsabilidade
A distinção entre uma plataforma que meramente conecta e outra que efetivamente gerencia é crucial. No modelo que podemos chamar de “plataforma empresarial”, há uma nítida direção e comando sobre a atividade econômica ofertada. A plataforma não apenas possibilita negócios jurídicos por meio de um ambiente virtual, mas controla o conteúdo desses negócios, limitando a autonomia dos usuários. Em muitos casos, suprime-se a possibilidade de negociação direta entre os prestadores e tomadores de serviço. Nesses contextos, a plataforma se torna o verdadeiro contratante entre as diferentes pontas do mercado, assumindo uma posição de hierarquia e direção unitária que são características de uma organização empresarial.
Culpa in Eligendo: A Base da Responsabilidade na Escolha e Supervisão
Mesmo que não exista uma relação trabalhista formal entre a plataforma e seus motoristas, a responsabilidade por atos de terceiros pode ser configurada pela culpa in eligendo. Este princípio jurídico refere-se à falha em selecionar ou fiscalizar adequadamente o agente que executará um serviço. No contexto das plataformas de transporte, a necessidade de cadastro prévio de motoristas e veículos, juntamente com a possibilidade de aplicar sanções como suspensões ou descredenciamento, indica um poder de escolha e supervisão por parte da plataforma. A decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sublinha que, ao exigir e controlar esses critérios, a plataforma assume uma parcela de responsabilidade pela conduta de seus parceiros.
A Força da Preposição: Quando a Plataforma Responde pelos Atos do Motorista
Para além da culpa in eligendo, existe o robusto argumento da responsabilidade objetiva dos preponentes pelos atos de seus prepostos, conforme previsto no Código Civil. Uma relação de preposição se estabelece quando um agente (preposto) age sob a direção de outro (preponente), representando-o perante terceiros. Nas plataformas digitais, o motorista opera sob a supervisão e as diretrizes da plataforma, prestando um serviço em nome e no interesse econômico desta. Todos os elementos da preposição – direção, supervisão e atuação em nome e interesse alheios – estão presentes, tornando a plataforma objetivamente responsável pelos danos causados por seus motoristas, independentemente de culpa na escolha ou fiscalização.
Além do Vínculo Empregatício: A Abrangência da Responsabilidade Objetiva
É fundamental compreender que a aplicação da responsabilidade por preposição não está atrelada à existência de um vínculo empregatício. Mesmo que a relação entre a plataforma e o motorista seja classificada como parceria ou outra modalidade contratual, e não como emprego, a responsabilidade do preponente pelos atos do preposto permanece. A legislação civil brasileira é clara ao estabelecer essa responsabilidade objetiva, que é uma resposta à necessidade de alocar riscos em atividades econômicas complexas. Este é um ponto crucial, pois permite à justiça reconhecer a responsabilidade das plataformas sem a necessidade de adentrar na controvertida discussão sobre a natureza do vínculo de trabalho.
A Teoria da Aparência e a Confiança do Consumidor
Do ponto de vista do consumidor, a plataforma digital se apresenta como a provedora do serviço. É ela quem define as condições, o preço, seleciona os prestadores e gerencia todo o fluxo da interação. A teoria da aparência, amplamente reconhecida no direito, reforça essa perspectiva: se a plataforma se apresenta ao público como a parte contratante, o consumidor tem o direito de confiar nessa representação. Essa percepção do usuário solidifica a ideia de que a plataforma não é uma mera intermediária, mas sim a parte principal do contrato de transporte, o que naturalmente atrai para si a responsabilidade pelos incidentes que ocorrem na execução do serviço.
A Jurisprudência em Evolução: Solidificando a Posição dos Tribunais
O movimento judicial no Brasil tem sido progressivo no reconhecimento da responsabilidade das plataformas. Tribunais de Justiça como o do Rio de Janeiro e o de São Paulo já têm se posicionado de forma consistente, fundamentando suas decisões tanto nas regras do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a responsabilidade solidária de todos os agentes da cadeia de serviços, quanto na figura da preposição. Essa convergência de argumentos jurídicos reforça a ideia de que o modelo de negócio das plataformas digitais de transporte impõe a elas a obrigação de responder pelos danos decorrentes da atividade que promovem e controlam.
O Cenário Atual e os Impactos para o Futuro dos Negócios
A crescente “uberização” e “pejotização” das relações de trabalho, juntamente com a dinamicidade e imaterialidade das operações digitais, exigem que o direito se adapte. O conceito de preposição, neste contexto, ganha uma relevância sem precedentes, servindo como uma ferramenta para a alocação de riscos e responsabilidades em modelos de negócio inovadores. Empresas que operam com plataformas digitais devem estar atentas a essa evolução, compreendendo que o comando ou a supervisão sobre os serviços prestados, mesmo que de forma “parceira”, é suficiente para atrair para si as obrigações e consequências legais, sem prejuízo da responsabilidade solidária consumerista.
Converse com seu contador ou consultor jurídico sobre essa oportunidade de revisar as políticas de gestão de riscos e conformidade da sua empresa frente a essas novas interpretações legais.
Referências Bibliográficas:
- TJRJ, Quarta Câmara de Direito Privado, Agravo de Instrumento nº: 0059695-06.2025.8.19.0000, Relatora Des. Cristina Tereza Gaulia, decisão de 28.10.2025.
- FRAZÃO, Ana. A renovada importância da noção de preposição. Impactos sobre os casos de terceirização de serviços e de serviços prestados por plataformas digitais empresariais. In: MUSSI, Luiz Daniel Haj. Direito Empresarial Brasileiro. Estudos em homenagem ao Professor Alfredo de Assis Gonçalves Neto, Revista dos Tribunais, 2024.
- TJSP – RI: 00360329420168260114 SP 0036032-94.2016.8.26.0114, Relator: Marcelo da Cunha Bergo, Data de Julgamento: 13/04/2018, 6ª Turma Cível.