
O Sistema Crea/Confea é criticado pela falta de transparência e de Análises de Impacto Regulatório (AIR), o que compromete a competitividade da engenharia brasileira e a atração de novos profissionais. É crucial que os conselhos modernizem suas práticas regulatórias com base em evidências para garantir um ambiente de negócios mais previsível e o desenvolvimento do setor.
A Engenharia Brasileira em Crise: Um Olhar Crítico sobre a Qualidade da Regulação Profissional
A engenharia, motor de inovação e desenvolvimento, encontra-se em um ponto de inflexão no Brasil. Dados recentes revelam uma diminuição preocupante na formação de novos engenheiros, um cenário que contrasta drasticamente com a demanda aquecida do mercado. Analisar a qualidade da regulação profissional é fundamental para compreender as causas e buscar soluções que garantam o futuro dessa área vital para o país.
O Cenário Desafiador da Engenharia Brasileira
O setor de engenharia no Brasil enfrenta uma realidade complexa e preocupante. Observa-se uma queda persistente no número de estudantes matriculados em cursos de engenharia, com uma redução de aproximadamente 25% entre 2015 e 2023. Essa diminuição acentua uma defasagem já existente: o Brasil dispõe de um número significativamente menor de engenheiros por habitante em comparação com outras nações. Enquanto países desenvolvidos como Estados Unidos e Japão registram cerca de 25 engenheiros por mil habitantes, e até mesmo nações do BRICS como Índia e China possuem 15 e 13, respectivamente, o Brasil conta com apenas seis. Essa escassez levanta alertas sobre um possível “apagão de engenheiros”, que pode gerar gargalos na execução de investimentos em infraestrutura e impactar negativamente o crescimento econômico a longo prazo, mesmo com um mercado que emprega a grande maioria dos profissionais formados na área.
A Essência da Regulação Profissional no Brasil
A legislação brasileira, através da Constituição Federal de 1988, estabelece a liberdade para o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão como regra fundamental. Contudo, essa liberdade pode ser condicionada à observância de qualificações profissionais, especialmente quando a natureza da atividade envolve riscos significativos à sociedade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reiterado que qualquer restrição ao exercício profissional deve ser devidamente justificada pelo potencial lesivo da atividade. Para a engenharia, devido à sua inerente responsabilidade pela segurança de projetos e infraestrutura, a necessidade de regulação é inquestionável. O registro em um Conselho Regional de Engenharia (Crea), conforme a Lei nº 5.194/1966, é uma exigência legal que assegura padrões mínimos de competência e ética, protegendo a população e a própria integridade da profissão.
O Papel Estratégico do Sistema Crea/Confea
O Sistema Confea/Crea, composto pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) e seus Conselhos Regionais (Crea), opera como uma entidade reguladora com atribuições de autoridade pública. Suas funções abrangem desde a habilitação e registro de profissionais, passando pela normatização de práticas, até a fiscalização do exercício da engenharia e a aplicação de sanções, incluindo a cassação de registros. Esse poder regulatório confere ao sistema uma capacidade singular de influenciar diretamente o mercado de trabalho, as práticas setoriais e a dinâmica competitiva no segmento da engenharia. A relevância socioeconômica de suas prerrogativas é inegável, dado o impacto das obras e projetos de engenharia na vida cotidiana e no desenvolvimento nacional.
Desafios Regulatórios em Obras Públicas
A influência da regulação do Sistema Crea/Confea é particularmente notória no âmbito das obras públicas de infraestrutura. Historicamente, a exigência de Anotações e Atestados de Responsabilidade Técnica (ARTs) tem sido um mecanismo essencial para comprovar a capacidade técnica de empresas e profissionais. No entanto, essa prática, embora legítima em sua finalidade de assegurar qualificação, por vezes funcionou como uma barreira de entrada para novas companhias, limitando a competitividade no mercado. A Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos, buscou modernizar e racionalizar essas exigências, estabelecendo critérios mais claros e proporcionais para a comprovação de qualificação técnica. A legislação atual permite maior flexibilidade, inclusive na entrada de profissionais estrangeiros, visando aprimorar a eficiência e a competitividade dos processos licitatórios.
A Lacuna na Qualidade Regulatória: A Ausência de AIR e ARR
Um ponto crítico na avaliação da atuação do Sistema Crea/Confea é a aparente ausência de ferramentas de boa governança regulatória. Levantamentos recentes indicam que, no período de 2018 a 2024, não foram encontradas Análises de Impacto Regulatório (AIR) ou Avaliações de Resultado Regulatório (ARR) produzidas pelo Confea. A AIR, exigida pela Lei nº 13.874/2019, é um instrumento crucial para garantir que as decisões regulatórias sejam baseadas em evidências, avaliando sistematicamente os potenciais impactos econômicos, sociais e concorrenciais antes da implementação. A ausência documentada dessas análises, ou de relatórios formais de sua dispensa, levanta questionamentos sobre a transparência e a fundamentação das decisões regulatórias, distanciando a prática dos princípios de governança que o próprio Estado brasileiro busca promover, como os preconizados pela Estratégia Regula Melhor.
Um Problema Sistêmico nos Conselhos Profissionais
A questão da qualidade regulatória não se restringe ao Sistema Crea/Confea, revelando-se um desafio sistêmico entre os diversos conselhos profissionais no país. Essas entidades, ao exercerem competências regulatórias com características de poder público – como a cobrança de anuidades de natureza parafiscal, o recurso à execução fiscal, a imunidade tributária e a submissão ao controle dos Tribunais de Contas – impactam significativamente mercados e o exercício profissional. Um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que a incorporação de instrumentos de racionalização regulatória é incipiente nesse universo: uma ínfima parcela dos conselhos de fiscalização profissional declarou possuir normativo interno para AIR, com ainda menos evidências de sua efetiva realização. Este quadro reforça a necessidade de aplicar aos conselhos profissionais os mesmos padrões de uso de evidências, proporcionalidade, transparência e participação social esperados da regulação estatal.
Do Ideal à Prática: A Atuação Crítica dos Conselhos
Em tese, a regulação exercida por pares, como ocorre nos conselhos profissionais, deveria ser um modelo de responsividade, abertura e excelência técnica. Espera-se que essas entidades atuem estrategicamente, colaborando com o governo em questões como inovação e sustentabilidade, buscando benchmarks internacionais, coletando dados sobre os efeitos das exigências burocráticas e avaliando os impactos de suas decisões. No entanto, a prática muitas vezes diverge. A atuação frequentemente se concentra na arrecadação, na criação de barreiras de entrada e na aplicação de sanções, por vezes carecendo de fundamentação técnica robusta. O caso do Crea de Minas Gerais, que cassou registros de engenheiros ligados ao desastre de Brumadinho sem a conclusão de processos judiciais e com base em narrativas midiáticas, ilustra uma preocupante fragilidade na condução de processos disciplinares.
As Implicações da Má Regulação
A má qualidade regulatória, ou a carência de uma regulação eficiente e transparente, acarreta implicações significativas para a engenharia e para a economia como um todo. Quando as decisões regulatórias não são embasadas em dados, ou quando processos disciplinares são conduzidos sem a devida diligência e fundamentação técnica, a credibilidade das instituições reguladoras é minada. Isso não apenas afasta novos talentos da profissão, mas também pode desmotivar profissionais experientes. Além disso, a imposição de exigências burocráticas desproporcionais gera custos desnecessários para empresas e profissionais, dificultando a inovação e a competitividade. Em vez de fomentar um ambiente de segurança e excelência, uma regulação deficiente pode introduzir incerteza jurídica e comprometer a confiança no setor, impactando negativamente a capacidade do país de concretizar seus projetos estratégicos.
O Imperativo da Modernização Regulatória
Diante dos desafios de escassez de profissionais e das deficiências na qualidade regulatória, a modernização do modelo de regulação profissional no Brasil é um imperativo. É fundamental que o Sistema Crea/Confea e outros conselhos incorporem as melhores práticas de governança regulatória, incluindo a implementação efetiva da Análise de Impacto Regulatório (AIR) e da Avaliação de Resultado Regulatório (ARR). Isso implica em tomar decisões baseadas em evidências sólidas, assegurar a transparência de seus processos e promover a participação ativa da sociedade e dos profissionais na construção de um ambiente regulatório mais eficaz. Somente por meio de uma regulação que valorize a técnica, a ética, a proporcionalidade e a responsabilidade, será possível superar os obstáculos atuais, mitigar custos desnecessários e posicionar a engenharia brasileira para impulsionar o desenvolvimento sustentável do país.
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Referência Bibliográfica:
VALENTE, Patricia Pessoa. Qualidade regulatória na regulação profissional: o caso do Sistema Crea/Confea. Jota, 23 dez. 2025. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mulheres-na-regulacao/qualidade-regulatoria-na-regulacao-profissional-o-caso-do-sistema-crea-confea. Acesso em: 26 de dezembro de 2025.